Por William Douglas
Estamos no ano de 2035 e resumirei uma das maiores transformações sociais da década. Ela ocorreu em duas fases bem distintas.
A primeira fase começou em 2025, quando um cientista, buscando o protetor solar perfeito, conseguiu sintetizar a melanina e aplicá-la uniformemente em qualquer pessoa. Pessoas que, por qualquer razão, apreciavam ou se identificavam com a cor da pele mais escura passaram a utilizar o procedimento estético. Foram chamados de transnegros.
Pessoas que nasceram e viveram 20, 30, 40 anos como brancos tornaram-se negros, digo, transnegros. A transição incluía cirurgias, implantes e preenchimentos que, com quase perfeição, somavam à cor da pele outras características fenotípicas dos negros: preenchimento labial, alteração do nariz, modificações químicas no cabelo etc.
Surgiram, então, aqueles que, por razões ideológicas ou por serem negros biológicos, não aprovaram a mudança. Uns não aceitavam a transição, outros, menos rigorosos, queriam apenas que os neonegros não tivessem acesso a programas e ações afirmativas, entendendo que deveriam ser exclusivos para negros de nascença. Os transnegros, por sua vez, queriam ser chamados apenas como negros, e não com, segundo eles, o preconceituoso e discriminatório termo “trans”. Eles diziam que eram tão negros quanto qualquer negro de nascença e que qualquer rejeição a isso era atitude preconceituosa.
A batalha que se seguiu ocorreu em todos os campos: escolas, universidades, mídia, artes e até nas igrejas. Partidos, classe artística e intelectuais se posicionaram.
Os transnegros elegeram como sua referência aquela que foi considerada a primeira transnegra: Rachel Dolezal, uma mulher branca que chegou a ser presidente da Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP), nos Estados Unidos. A musa do movimento nasceu branca, caucasiana, com aparência europeia, mas, por se autoidentificar como negra, passou a modificar sua aparência mesmo antes da invenção do chamado “hormônio da negritude”. Dolezal gerou ótimos debates sobre identidade e raça. Em 2016, mudou legalmente seu nome para Nkechi Amare Diallo. O nome Nkechi é de origem nigeriana e significa “presente de Deus”.
Em uma entrevista à CNN em 2017, Rachel Dolezal disse acreditar que raça é uma “construção social”. Ninguém melhor do que ela para simbolizar o novo paradigma e a luta pela teoria da identidade racial e étnica.
As pessoas transnegras foram financiadas por fundações e instituições que se opunham ao patriarcado e à cultura judaico-ocidental. Seu crescimento foi exponencial. Em pouco tempo, comerciais com negros e cotas raciais eram ocupados por negros trans. Negros biológicos reclamaram, quiseram manter o “trans” na designação dos neonegros, os quais revidaram querendo obrigar os adversários a serem chamados de “bionegros”. Segundo eles, a expressão “negros” era excludente de pessoas transnegras. No final, o Judiciário garantiu a “cor social” e o apagamento de qualquer registro histórico que pudesse discriminar um negro trans relacionando-o com sua cor de pele de nascimento.
Houve uma campanha na qual se pedia prisão, demissão, boicote e indenizações civis de pessoas que não aceitavam os transnegros como pessoas negras. Pediram o cancelamento de expoentes da comunidade negra, sob a acusação de preconceito.
O Legislativo demorava a se posicionar, com uma infinidade de debates, projetos de lei, emendas e negociações entre os grupos ali representados. O STF entendeu que a transnegrofobia era modalidade de racismo. Pouco importava a genética e o histórico branco: transnegros eram negros e quem dissesse o contrário incidia em crime. A transnegrofobia passou a ser, ela também, modalidade de racismo.
Pessoas, brancas e negras, que não concordavam passaram a ser excluídas de espaços coletivos. Negros biológicos que não concordavam foram expulsos do próprio movimento negro. Eram chamados de lixo, “nem é gente”, nazistas, capitães do mato etc. As ameaças de agressão física tornaram-se agressões reais, mas tais violências eram explicadas e toleradas como “resistência”, forma de reparação histórica e combate ao autoritarismo.
Os dados estatísticos passaram a ser impactados com a nova política. Pessoas brancas pintadas de negro que agridem pessoas negras são registradas como negras também. O número de ricos, CEOs, juízes e empresários negros aumentou exponencialmente. Quem negasse a condição de negro desses ex-brancos era objeto de representações, inquéritos e toda sorte de justa reação à inaceitável transnegrofobia. Abrigos para negros passaram a ter mais brancos biológicos. Boa parte dos brancos pobres passou a tingir-se de preto para poder ter acesso às cotas.
Premiações para pessoas negras passaram a ser dominadas por negros trans. Em 2029 a pessoa negra do ano, a cantora negra, a maior liderança política negra, os ganhadores de 60% das bolsas para negros e 82% das cotas raciais foram posições ocupadas por negros trans. Eles tinham aparência de negros e como tal se identificavam. Quem discordava era processado.
Então, começou a segunda fase.
O momento seguinte e mais brutal da revolução foi a bombástica posição da academia, confirmada por inúmeras teses de doutorado, dizendo que o que faz uma pessoa ser negra não é a cor da pele, ou o fenótipo, e sim um sentimento, uma escolha de cada um.
Qualquer pessoa branca, por estar envergonhada do passado de opressão de sua etnia ou por qualquer outra razão, poderia se identificar como negra. Cada um é o que quiser ser!
A marca da nova fase foi a libertação dos indivíduos de qualquer amarra objetiva e, portanto, opressora. A lição de Rachel Dolezal foi repetida incessantemente: ser negro é uma “construção social”. A lição de Simone de Beauvoir, de que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, também foi mencionada. De igual modo, “não se nasce negro, torna-se negro”.
A partir dessa evolução conceitual e interpretativa, muitos brancos tornaram-se negros, dispensando o uso do “hormônio da negritude” e até mesmo as intervenções cirúrgicas para características secundárias do fenótipo. A pele não é nada, a aparência (fenótipo) não é nada, o que contava era sentir-se negro.
Pessoas brancas que se identificam como negras passaram a disputar as cotas, as premiações, os lugares de fala. Quem discordasse disso era transnegrofóbico e bandido. O que importa não é a genética, a anatomia, o fenótipo, mas sim a identidade pessoal e subjetiva.
Negros que eram contra a “palmitagem” foram chamados de transnegrofóbicos e de rad-fóbicos, por declararem que não queriam namorar pessoas brancas que se identificam como negras.
Em 2032, o negro do ano, a cantora negra, o cantor negro, 90% do Olodum, os ganhadores de 80% das bolsas para negros e 92% das cotas raciais foram posições ocupadas por pessoas de pele branca que se identificavam como negros.
2033 foi o ano que viu, pela primeira vez, um branco que se identificava como negro ser o Ministro da Igualdade Racial. Em 2034, o prestigioso Troféu Raça Negra foi dado a uma ruiva sardenta que fez a transição, mas preferiu manter a pele original e os delgados nariz e lábios.
Em 2035, o Congresso Nacional homenageou Lívia Carvalho, que em 11 maio de 2024, no Twitter/ X, no perfil @meninanaopode, fez postagem profética imaginando como seria um mundo onde brancos iriam exigir ser reconhecidos como negros e quem discordasse seria perseguido e cancelado. A imprensa comparou-a, com justiça, a Nostradamus.
A discussão sobre opressão e dívida histórica foi substituída pela constatação de que raça nem existe, que isso é um conceito ultrapassado. Certo deputado, em 2034, em meio a uma acalorada discussão no Congresso Nacional, viu uma deputada branca, de lindos cabelos alisados, ironizar uma mulher negra mandando-a cuidar melhor de seus dreads. Irritado, ele disse: “Pelo menos ela é negra”.
O episódio lembrou outro, ocorrido uma década antes, quando em 2024 um outro Nikolas disse para uma outra Érika que “ao menos ela é ela”. Agora, a frase foi “pelo menos ela é negra”. O mundo caiu. Vieram pedidos de cassação, indenização multimilionária, prisão e tudo o mais. O deputado, o de 2034, foi considerado nazista, preconceituoso e um perigo para a democracia. Como resultado, após devido processamento, o Judiciário deixou seu legado iluminista: uma pessoa branca que se identifica como negra não pode ter sua qualidade de negra negada sob pena de haver crime de transnegrofobia.
Enfim, em dez anos, a sociedade mudou. Qualquer pessoa branca tem todo o direito de ser negra. Não precisa ter o fenótipo, ela é negra e pode ficar da forma que se sentir melhor. Pode ter nascido branca, pode não ter quase nenhuma melanina, a pele alvíssima, pode ter lábios fininhos e aparência nórdica: tudo é uma questão cultural e de escolha.
Se a pessoa se identifica como negra, quem é você, ou a natureza, ou a ciência, para negar o direito à autodeterminação?