Huvakka Bhimappa não tinha nem 10 anos quando foi oferecida por seus pais à deusa hindu da fertilidade. Como uma “iniciação”, foi estuprada pelo tio em troca de um sári e algumas joias, então os anos de escravidão sexual começaram.
A menina se tornou o que é conhecido no sul da Índia como devadasi, o que significa que seu casamento com um mortal é proibido. Seguindo o costume, ela “sacrificou” sua virgindade a um homem mais velho.
“No meu caso, foi o irmão da minha mãe”. disse Huvakka Bhimappa, que agora tem cerca de 50 anos.
Pouco depois, sob o pretexto de sua devoção à deusa Yellamma, ela foi submetida a outros homens, que pagaram sucessivamente por serviços sexuais. Por meio da prostituição, conseguiu sustentar seus parentes durante anos.
Huvakka chegou a se apaixonar por um homem certa vez, mas teria sido inaceitável casar com ele. Sua situação de mulher consagrada à deusa Yellamma condenou-a à marginalização na comunidade em que vive.
“Se eu não fosse uma devadasi, teria família, filhos e dinheiro. Teria vivido bem”, lamenta, afirmando que também teria conseguido escapar da escravidão sexual.
Sem formação acadêmica, Huvakka encontrou apenas trabalho no campo, ganhando US$ 1 (cerca de R$ 5) por dia.
‘Dois filhos aos 17 anos’
Presente na cultura do sul da Índia há séculos, a figura da devadasi já ocupou um lugar respeitável na sociedade. Muitas delas eram mulheres instruídas, dançarinas e estudantes de música clássica, que levavam uma vida confortável e escolhiam seus parceiros sexuais.
“Essa noção de escravidão sexual mais ou menos autorizada pela religião não fazia parte do sistema original”, contou à AFP a historiadora Gayathri Iyer.
Segundo a historiadora, foi no século XIX, durante a administração colonial britânica, que o pacto entre as devadasi e a deusa se transformou em um empreendimento de exploração sexual.
A Índia até proibiu a prática em todo o país em 1988, mas, de acordo com a Comissão Indiana de Direitos Humanos, ainda existem 70 mil devadasi no Estado de Karnataka.
Muitas famílias em Saundatti, uma pequena cidade no sul do país tem um templo dedicado a Yellamma. Elas acreditam que ter uma devadasi na família pode trazer boa sorte e proteger seus membros.
Nesse templo, Sitavva Jodatti foi consagrada quando tinha oito anos à deusa, para cobrir as necessidades financeiras da família, quando seu pai adoeceu. Ela foi então retirada da escola e forçada a se prostituir para financiar seus cuidados médicos.
“Quando as pessoas se casam, há uma noiva e um noivo. Quando percebi que estava sozinha, comecei a chorar (…) Aos 17 anos, eu já tinha dois filhos”, diz a mulher, que hoje tem 49 anos e dirige uma organização que ajuda ex-devadasis a superarem sua condição.
‘Muito jovem para dar à luz’
Segundo Nitesh Patil, funcionário distrital responsável pela administração de Saundatti, não há “casos recentes”. Muitas devadasi que conseguiram deixar sua condição para trás ficaram sem recursos e sobrevivem graças a trabalhos braçais, ou agrícolas, mal pagos.
Rekha Bhandari, uma ex-devadasi, conta que todas foram submetidas à “prática cega de uma tradição” que arruinou suas vidas. Ela tinha 13 anos quando sua mãe faleceu.
Foi forçada a ingressar na ordem devadasi e perdeu sua virgindade para um homem de 30 anos. Pouco depois, ela engravidou.
“Foi difícil ter um parto normal. O médico gritava com minha família, dizendo que eu era muito jovem para dar à luz”, conta Rekha, de 45 anos.
Perto do templo de Yellamma, a ex-devadasi Vatsala se lembra de ter sido enganada por um cliente e xingá-lo.
“Depois de estar comigo, ele jogou algo em mim que pensei ser dinheiro. Foi no meio da noite, eu não conseguia enxergar bem e depois percebi que era apenas papel”, disse Vatsala, de 48 anos, à AFP.
Pouco depois, ao saber que o vigarista havia morrido, foi dito que “Yellamma também ficou com raiva”.