Por Rafael Custódio | Edição: Bruno Fonseca
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O projeto do novo Centro de Treinamento (CT) do Santos Futebol Clube ameaça 90 mil metros quadrados de vegetação nativa de Mata Atlântica, em Praia Grande, no litoral sul paulista. O complexo esportivo será bancado pelo pai do jogador Neymar Junior, o empresário Neymar da Silva Santos, que já respondeu por infrações ambientais e foi multado em 2023 no valor de R$ 16 milhões, junto ao filho, pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Mangaratiba, no Rio de Janeiro. A multa foi revogada em 2024.
Apesar da inauguração do CT ser anunciada para 2026, a obra entra em choque com o artigo 2º da lei 11.428, de dezembro de 2006, conhecida como a “lei da Mata Atlântica”, que não permite a destruição do bioma para um empreendimento como o anunciado pelo pai de Neymar.
“A gente só pode derrubar a Mata Atlântica, no Brasil, em áreas privadas, como nesse terreno, se essa obra comprovadamente atender a um interesse social ou utilidade pública, que não é o caso de um empreendimento privado, neste caso”, explica Luís Fernando Guedes Pinto, diretor da ONG SOS Mata Atlântica.
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A obra do CT prevê a construção de três campos de futebol, um estádio para 25 mil pessoas, uma rede de hoteis, clube e academia. A vegetação que está no terreno é remanescente do Parque Estadual Xixová-Japuí, criado em 1993 e que possui 900 hectares, o equivalente a mais de mil campos de futebol. O orçamento previsto para a obra ainda não foi informado, mas, segundo a promessa de Neymar pai, será totalmente paga por ele e terá custo zero ao clube.
Por que isso importa?
- Projeto anunciado pelo pai do jogador Neymar Jr é um exemplo de obra na qual o processo de licenciamento deve avaliar o impacto ambiental.
- Lei que pode ser aprovada na Câmara dos Deputados prevê diminuir o rigor do licenciamento.
O Santos já possui o CT Rei Pelé, em atividade desde 2005, que fica próximo ao estádio da Vila Belmiro e, recentemente, passou por uma reforma que custou R$ 10 milhões, também patrocinada pelo pai do jogador Neymar. Com a construção do novo centro de treinamento, o antigo CT ficará à disposição dos times de base e femino do alvinegro santista.
A Agência Pública consultou a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) e a Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SEMA) da Praia Grande que disseram ainda não ter recebido pedido de licenciamento para a construção da nova sede do clube santista.
Em frente ao terreno, há uma placa que autoriza a exploração da vegetação protegida, mas, segundo a Cetesb, a finalidade é para a “realização de levantamento planialtimétrico — atividade de baixo impacto, que pode envolver abertura de picadas e eventual bosqueamento”, ou seja, uma ação para levantar as características topográficas do espaço. Leia a nota na íntegra.
Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa da NR Sports e de Neymar Santos respondeu que “não há um projeto formalizado, nem informações oficiais a serem divulgadas”, mesmo após o empresário ter apresentado o projeto ao Santos e à imprensa.
Neymar pai já foi multado em 2023 por descumprir a legislação ambiental, após a reforma de um lago na mansão de seu filho, em Mangaratiba, no Rio de Janeiro. Na época, a fiscalização ambiental constatou que foram utilizadas areia de uma praia próxima e um curso d’água natural foi desviado. Na ocasião, Santos foi detido por desacato, mas acabou liberado. O processo foi tramitado em segredo de justiça e a multa revogada, em agosto de 2024.
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Pai de Neymar, prefeito e presidente do Santos comemoraram CT
O anúncio do novo complexo esportivo foi feito em junho deste ano, em Santos, no litoral paulista, sob os holofotes da imprensa, patrocinadores e convidados. No evento, estavam lado a lado o pai do jogador Neymar; o prefeito da Praia Grande, Alberto Mourão, do MDB; o presidente do Santos Futebol Clube, Marcos Teixeira; e o diretor do Grupo Peralta, Julio Peralta, que é posseiro do terreno que o projeto prevê o novo complexo esportivo.
Em seu discurso, Mourão destacou que a prefeitura recebeu com muita alegria a notícia e disse que o CT do Santos – Vila Praia Grande “já é realidade” e que o empreendimento está caminhando para “o avanço da cidade”.
Diferente de Mourão, a assessoria de imprensa da prefeitura da Praia Grande, por meio de nota, explicou que ainda não há ações concretas sobre a construção no terreno e que a “intervenção dependerá de processo de licenciamento junto à Cetesb – Estado de São Paulo, com a definição da área para avaliação ambiental, considerando áreas de preservação e compensação”.
Segundo os financiadores do complexo, embora o local tenha planos de ser administrado pela NR Sports, o Santos poderá utilizar o espaço a qualquer momento, seja para treinos ou jogos. A novidade foi dita por Neymar pai ao lado do presidente do clube, Marcos Teixeira.
Ao ser questionado pela Pública se o clube tem conhecimento dos impactos ambientais, a assessoria de imprensa do alvinegro santista respondeu que “trata-se de um empreendimento privado” e que a sugestão era tentar “contato com os empreendedores”.
Moradores se manifestaram contra obra
O anúncio do novo complexo esportivo caiu como um gol contra à preservação ambiental, na opinião da associação local de moradores. O grupo critica que Neymar pai fez o anúncio do projeto à direção do Santos e à imprensa, sem que houvesse uma consulta aos moradores da área onde o terreno está sediado.
Segundo Leniro Guedes, o presidente da Associação dos Moradores do Canto do Forte (Amoforte), na Praia Grande, o conselho de preservação do Parque Estadual Xixová-Japi, vizinho ao futuro empreendimento esportivo, deve se reunir nos próximos dias para discutir meios de exigir clareza sobre o projeto.
“O desenvolvimento é bem-vindo, mas a gente vê com certo pesar, por se tratar de mata nativa, preservada com espécies da mata atlântica”, disse Guedes.
“A gente vai questionar, fazer apontamentos, sobre afluentes, nascentes, espécies e desmatamento, preservação e a reposição florestal”, acrescentou o representante da Amoforte.
Lázaro Zeferino, de 65 anos, é professor de futebol para amputados e vizinho ao parque Xixová-Japuí. Ele disse à reportagem que espera que o grupo de empresários apresente o pedido de licenciamento à população. “Destruir a vegetação, derrubar árvores que hoje a gente necessita para melhorar as condições climáticas do planeta, a gente precisa de compensação gigantesca […] se não tiver isso, vai ser uma obra contra o planeta e contra a natureza”, classificou.
Uma petição online mobilizou 1,2 mil assinaturas de pessoas de todo o país contra a construção do centro de treinamento. No texto de descrição, o peticionário descreve como “um gol contra” a natureza e que “não há necessidade de sacrificar nossas árvores, bioma e ecossistema neste local. Somos a favor do desenvolvimento e progresso de nossa cidade, mas não a esse custo.”
Procurado pela Pública, o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) informou que a “promotoria de Justiça de Praia Grande recebeu a representação que está na fase de análise, aguardando informações” e que a denúncia não fala em “derrubada da vegetação, mas possibilidade de que isso venha a ocorrer”.
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Mata Atlântica é bioma mais degradado do Brasil
Em ano de Conferência das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas (COP) – e não de Copa do Mundo – o que está em jogo é o debate sobre a preservação dos biomas brasileiros, entre elas a Mata Atlântica, considerado o mais destruído do Brasil, com apenas 12% de sua vegetação nativa ainda em pé.
“O governo brasileiro tem um compromisso do desmatamento zero, que ele assumiu até 2030. Não adianta parar lá na Amazônia e desmatar nove hectares aqui na Baixada Santista. Nós estamos no ano da COP. E a gente vai levar pra COP que nós estamos desmatando Mata Atlântica pra fazer campo de futebol?”, questionou Luís Pinto.
Segundo o diretor da SOS Mata Atlântica, o Projeto de Lei 2.159/2021, que ficou conhecido como o PL da Devastação e pode ser aprovado na Câmara dos Deputados nesta semana, pode colocar em xeque a legislação que protege o bioma e beneficiar projetos como o proposto pela NR Sports.
“O ‘PL da devastação’, ele permite que [o projeto do futuro] estádio passe do jeitinho que tá. O licenciamento passa a ser um processo menos burocrático e ele tem um ‘jabuti’ lá que altera essa proteção da lei da Mata Atlântica”, disse.
O PL 2.159/2021 flexibiliza as leis de licenciamento ao dar autonomia para que os municípios possam permitir ou vetar que áreas verdes possam ser desmatadas, principalmente em áreas rurais, podendo tirar a autonomia de órgãos de fiscalização com o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio).
Shopping e Havan são vizinhos do futuro CT
O vizinho do terreno onde foi anunciado o CT Vila Praia Grande é o shopping Plaza Litoral, inaugurado em 1998, em um ponto estratégico: a entrada da cidade. O espaço é um grande bloco de concreto, rodeado pelo verde do Parque Xixová-Japuí. Em 2013, foi construída na área uma loja da Havan, do empresário bolsonarista Luciano Hang.
O pedido de licenciamento para a construção do shopping, segundo a Cetesb, ocorreu em meados da década de 1990 e o órgão responsável por conceder o aval foi o Departamento Estadual de Proteção de Recursos Naturais (DEPRN) e o Instituto Florestal.
Para Priscila Artigas, presidente da Comissão de Direito Ambiental, do Instituto de Advogados de São Paulo (IASP), a legislação menos rigorosa, sobre a preservação da Mata Atlântica pode ter levado à autorização da construção na década de 1990.
“Antes, existia uma legislação que protegia a Mata Atlântica, mas era um decreto federal, 750, de 1993, e provavelmente ele não estabelecia essas restrições para a implantação desse empreendimento”, apontou a advogada.
No caso da construção da loja da Havan, a Cetesb disse à Pública que a obra foi “licenciada pela Cetesb entre 2013 e 2017, com base em análise de impacto. Entre as condicionantes, foi exigido o plantio de espécies nativas, monitorado por vistorias técnicas. A última inspeção ocorreu em maio deste ano”, explicou o órgão. A nota da Cetesb na íntegra está aqui.