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3 de maio de 2024 | 08:13

Artigo: A tentação da competência por decreto

A Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro anunciou mudanças no conteúdo e na avaliação da disciplina de Cálculo, por considerar anormais os índices de reprovação — na casa dos 70% dos alunos negros, contra 42% entre os estudantes brancos.

A ideia geral é suavizar a avaliação de desempenho, de modo a contornar os índices “insuportáveis” de insucesso, que resulta em maior evasão dos estudantes negros. A Universidade Federal da Bahia, sob o argumento da mudança do perfil dos novos alunos, que precisam trabalhar para se manter, optou por reduzir em 1.590 horas a carga horária da graduação em medicina. A carga horária desceu de 8.952 para 7.282.

A Resolução nº 516, de 22/8/2023, do Conselho Nacional de Justiça, optou por aceitar que, nos concursos públicos, cotistas sejam aprovados mesmo que com nota 20% inferior à nota mínima.

Mercê das louváveis intenções, reduzir a qualidade do ensino ou da cobrança nunca é a solução. O caminho, muito mais longo e trabalhoso, é intensificar as ações afirmativas, dar apoio educacional, financeiro, social e psicológico, sem diminuir o índice de exigência de qualidade no aprendizado e na qualidade do futuro servidor público. Se os alunos de medicina tiverem apoio adequado, poderão bem cumprir as 8.952 horas; e, sem ele, não poderão cumprir nem mesmo as 7.282.

A “competência por Decreto” só funciona até você precisar de um cirurgião ou até o dia em que o prédio ruir por erro de cálculo, ou até se formar uma rejeição social a servidores públicos escolhidos com nota abaixo do mínimo. Dar diploma artificial ou aceitar qualificação “de mentirinha” causará profundo dano aos pobres e aos negros. Não é saudável que os cotistas sejam vistos no mercado como menos capacitados. Diploma não cria, magicamente, competência. Isso só resolve estatísticas. Imaginem um paciente do SUS dizendo que quer ser atendido por médicos brancos, uma vez que as notas de aprovação dos médicos negros são menores. Em pouco tempo, haverá gente se recusando a ser atendida por negros, sejam cotistas ou não. Isso irá piorar o problema da discriminação e da segregação social e racial. Não se pode resolver um problema criando-se outro.

Inserir cotistas pobres no mercado de trabalho sem uma preocupação real com a sua qualificação e competitividade é covardia que irá prejudicá-los, bem como às pessoas que eles virão a atender. Se a decisão de aceitar notas diferentes em concursos públicos é tão boa, por que foi evitada nos concursos para a magistratura? O concurso público deve selecionar os melhores para atender a população. Aprovar candidatos que não atingem a nota/qualificação mínima prejudica de imediato o serviço público e, na linha do tempo, irá gerar preconceito contra os cotistas.

Entendemos as louváveis intenções dos autores das três medidas, mas seus efeitos são ruins. Fazer isso é ceder à tentação de resolver um problema (grave e que precisa de solução) pela ilusória via do atalho. Como disse H. L. Mencken, “para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”.

Precisamos dar condições internas e pessoais de acesso aos diplomas e aos cargos: superar os mesmos desafios, aprender a matéria, demonstrar suas habilidades em grau tão alto quanto os demais, tudo isso é trabalhoso, sim, mas é o que garante aos cotistas a autoestima, a qualificação e a competitividade quando a competência (e não o mero diploma ou cargo) é conquistada.

A sociedade tem uma demanda de profissionais qualificados e com habilidades específicas para cada função. Quem está abaixo de determinado ponto não é considerado “competente” e não consegue resolver os problemas que lhe cabem. É o advogado que não sabe redigir, o professor que não sabe ensinar, o médico que erra o procedimento ou o diagnóstico. Mesmo que não sejam facilmente expostos, profissionais malformados podem causar muitos danos, sempre ruins para os destinatários dos seus serviços. Também ruins para eles mesmos, pois perdem ou não ganham clientela e podem até ser processados por erros cometidos.

Quanto maior a competência profissional, maior será o status, o crescimento profissional, a remuneração e o bem para a sociedade. O mercado de trabalho, a matemática e a biologia não farão concessões aos aprovados por arte mágica. Espero que a sociedade brasileira não siga o fácil e rápido caminho que nega as lições e benefícios da ciência.

*WILLIAM DOUGLAS — Professor de direito constitucional, desembargador federal/TRF2, escritor, mestre em estado e cidadania e pós-graduado em políticas públicas e governo

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